sábado, 8 de março de 2014

I DOMINGO DA QUARESMA - ANO A

Gn 2,7-9; 3,1-7
Rm 5, 12-19
Mt 4,1-11

“Adorarás ao Senhor teu Deus” (Mt 4,10).

Iniciamos quarta-feira passada a quaresma, tempo de preparação interior e exterior para futura celebração da Páscoa quando mergulharemos no mistério da morte e Ressurreição do Senhor.
A preparação para Páscoa, nos três primeiros séculos, reduzia-se a um jejum realizado nos dois dias anteriores. A comunidade cristã vivia tão intensamente sua fé, até o testemunho do martírio (era tempo de perseguição), que não sentia necessidade de um período para renovar a conversão já acontecida com o batismo. A alegria da celebração pascal, porém, era prolongada por cinqu
enta dias (Pentecostes).
O Edito de Milão promulgado pelo imperador Constantino no ano 313[1] pôs fim à perseguição contra o cristianismo e Teodósio, em 380, tornou o cristianismo a religião oficial do Estado. Ser cristão começou a se tornar fácil e, pior ainda, um status. Muitos começaram a se “converter” ao cristianismo com o objetivo de ganhar os favores dos governantes. A partir de então, começou-se a sentir necessidade de um período que ajudasse a exortar os féis sobre a necessidade de uma maior coerência com o batismo[2]. Em vista disso foi que a Quaresma foi ganhando mais dias.
A partir do IV século, a estrutura da Quaresma é aquela dos quarenta dias, considerados à luz do simbolismo bíblico: quarenta dias que Jesus passou no deserto jejuando; quarenta anos que o povo passou no deserto antes de entrar na terra prometida; quarenta dias que Moisés esteve no monte Sinais antes de receber as tábuas da lei; os quarenta dias que Elias caminhou para o monte de Deus (Horeb) alimentado apenas pelo pão cozido sob as cinzas e pela água; os quarenta dias que Jonas pregou a penitência aos habitantes de Nínive[3].

No primeiro domingo da quaresma ouvimos sempre a narrativa da tentação de Jesus no deserto que é apresentada pela liturgia de hoje como antítese, ou antídoto, ao primeiro pecado do homem (1a leitura). De um lado um jardim preparado por Deus para o homem, cheio de árvores, frutas, animais, água, vida e prazer; do outro um lugar deserto. Ali, um homem foi colocado à prova em sua liberdade, escutou as sugestões do mal e disse não a Deus; aqui outro homem foi provado por Satanás mas resistiu e disse sim a Deus. Contemplemos, então, a primeira parte da antítese, o veneno do mal.
Deus criou o homem e a mulher, “plantou” um jardim para eles e todas as tardes os encontrava (cf. Gn 3,8). Estavam em comunhão com o Senhor, entre si e com a natureza. Desfrutavam de uma felicidade incomensurável. Tudo lhes era permitido menos comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal! É neste momento que aparece a “serpente” e começa um diálogo com a mulher lançando uma mentira: é verdade que Deus proibiu vocês comerem de todos os frutos do jardim? (cf. Gn 3,1); Eva responde: só não podemos comer do fruto da ciência do bem e do mal porque se não morreremos (cf. Gn 3,2-3); o Tentador, então, lança a dúvida e a desconfiança: não morrereis, mas Deus sabe que no dia em que dele comerdes sereis como Ele, conhecedores do bem e do mal (cf. Gn 3,4-5). É interessante perceber que o texto faz questão de salientar que antes do ato de “comer” o fruto a mulher viu que ele era desejável e atraente. Ou seja, o ato foi concebido interiormente antes de se exteriorizar em ação. Este ato nós chamamos de pecado porque quebrou a comunhão que o homem e a mulher tinham com seu Criador, entre si e com a natureza, e trouxe consequências negativas impensáveis: trabalhos penosos, dores alucinantes, mortes prematuras, assassinatos, dilúvios... Como se pode perceber, o pecado original não é o sexo, nem comer uma maçã, mas dizer por si só, independentemente de seu Criador, o que é certo e o que é errado. Fazer-se deus sem Deus.
Agora passemos para o antídoto do veneno do mal.
No evangelho Jesus também é tentado: “Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!”; “Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo!”; “Eu te darei tudo isso [os reinos do mundo e sua glória], se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”[4]. Todas as tentações têm o objetivo muito simples: afastar Jesus de seu caminho, da comunhão que ele tinha com o Pai. Ao contrário de Adão, Jesus vence as tentações, permanece unido ao seu Pai e com isso pode iniciar seu ministério.
Como vencer as sugestões do mal? Como dizer não ao pecado e sim a Deus?
A resposta ainda é encontrada no evangelho. Em primeiro lugar, é preciso estar cheio do Espírito Santo, como Jesus estava (cf. Mt 4,1). Ninguém vence o mal sozinho, e muito menos sem a força de Deus. É preciso pedir que o Espírito que recebemos no batismo e crisma seja sempre atuante em nós. Depois precisamos nos retirar a lugares desertos para orarmos, mesmo quando isso não for prazeroso (cf. Mt 4,1-2). Muitas pessoas vêm confessar e dizem que não estão mais sentido a presença de Deus e acham que isso é pecado. Não, isso pode ser o primeiro passo de uma oração mais profunda quando não rezamos mais para nos sentir bem mas para estar em comunhão com Deus. A oração, em alguns momentos, especialmente no início, pode ser prazerosa mas com o passar do tempo ela se transforma numa luta, ou num deserto. O importante é que nesses momentos não desistamos, ou fujamos da oração espontânea com devoções duvidosas só para nos sentirmos bem.
O que pode nos conduzir nesses momentos de deserto é o mesmo que conduziu Jesus: a Palavra de Deus. Se olharmos para as respostas que ele deu ao tentador todas eram introduzidas pela expressão “está escrito” e seguidas de uma citação bíblica: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”; “Não tentarás o Senhor teu Deus!”; “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto”. Para vencermos o veneno do mal precisamos conhecer a Escritura. Não é um conhecimento somente intelectual ou desassociado da vida e da Igreja.
Conhecer a Escritura significa ouvir a Palavra com a minha comunidade de fé, partilhar meu entendimento com os irmãos, ouvir do padre aquilo que a Igreja ensina, guardar no meu coração tudo isso para tentar praticar na minha família, trabalho, lazer e na própria comunidade cristã. É claro que a primazia dessa escuta comunitária não substitui a necessidade de eu cultivar uma leitura pessoal e oracional com a Sagrada Escritura, a lectio divina.
O antídoto do mal, então, é a busca da comunhão com Deus que se dá pela escuta da Palavra e pela oração. Na quaresma a Igreja nos pede jejum e abstinência na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa, mas nos convida que façamos uso dessa prática em outros dias desse tempo. Utilizemos então os momentos que não faremos as refeições para nos dedicar mais à oração e leitura da Escritura.


Pe. Emilio Cesar
Pároco de Messejana




[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89dito_de_Mil%C3%A3o, consulta realizada no dia 24 de março de 2011 às 10:30.
[2] Cf. Bergamini, A., Cristo, Festa da Igreja. O ano litúrgico. 3ª ed., São Paulo: Paulinas 2004, p. 265.
[3] Cf. Bergamini, A., Cristo, Festa da Igreja. O ano litúrgico. 3ª ed., São Paulo: Paulinas 2004, p. 265ss.
[4] Fico impressionado como o convite de algumas denominações cristãs é parecido com a terceira tentação de Jesus: “se ‘você aceitar Jesus’ [na nossa Igreja] vai acabar seu problema financeiros, suas contas vão ser quitadas e você vai ficar muito rico”. Quantos católicos caem nesta tentação!

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